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A estratégia russa à luz da história

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PRECISO PARAR com essa mania de fazer previsões. Minha última incursão futurológica redundou em deslumbrante fracasso! Quando redigi artigo recente, sobre os “destinos cruzados” de Ucrânia e Taiwan, algum diabinho me ‘soprou’ a sugestão de concluir o texto com as seguintes palavras:

“Na minha opinião pessoal, a tendência da crise ucraniana será desescalar na direção de algum tipo de toma-lá-dá-cá, com Putin desistindo da invasão, em troca da neutralização militar da Ucrânia (‘finalização’) . . .”

Em poucas palavras, minha expectativa era que o Kremlin obtivesse ‘na manhã’, sem disparar um tiro, somente pela via da intimidação psicológica, todas as concessões exigidas dos ucranianos, nas barbas de um Ocidente perplexo e inerte.

Dias depois, a Ucrânia era invadida. De pouco ou nenhum consolo me serviu a recordação de que, uma geração atrás, a fina flor da sovietologia ocidental, Henry Kissinger inclusive, foi surpreendida com a súbita queda do Muro de Berlim e o rápido desmoronamento da URSS. O que me veio à memória foi o bem-humorado conselho do saudoso Marco Maciel:

“Nunca faça previsões sobre o futuro. Quando muito, limite-se a prever o passado. É mais seguro!…”

Decidido a pôr em prática esse ensinamento, no presente artigo dedico-me a lançar luz sobre a longa história do expansionismo russo, de modo a reconstituir, em grandes linhas, o ‘arco geopolítico’ que desemboca no atual conflito na Europa oriental.

Durante muito tempo, líderes políticos, religiosos e intelectuais da Rússia czarista advogaram uma missão excepcional para o país. A “Terceira Roma”, herdeira do Império Bizantino, estaria destinada a conquistar o mundo, levando uma potente “Palavra Nova” a todos os quadrantes da Terra, um destino civilizador impulsionado por meios pacíficos ou não. Pelos três séculos que se seguiram às conquistas militares do czar Pedro, o Grande (1672/1725), fundador da dinastia Romanov, a Rússia expandiu seu território a um ritmo médio de 80 quilômetros quadrados por dia! Mesmo assim, o país chegou às vésperas da Revolução Bolchevique (1917) arrastando sérios déficits socioeconômicos.

No começo do século XX, a Rússia era a quinta maior potência industrial, celeiro agrícola da Europa, mas seu PIB per capita correspondia a somente 20% do britânico e a 40% do alemão. A expectativa de vida russa era então de apenas 30 anos (a mesma da China imperial e bem inferior à da Grã-Bretanha — 53 anos –, do Japão — 51 — e da Alemanha — 49. Com 33% de sua população adulta alfabetizada, o nível educacional da Rússia pré-revolucionária se comparava ao dos britânicos no século XVIII. Sob o comunismo, os diferenciais de bem-estar individual, em confronto com o Ocidente, continuaram elevados, e o desconforto que isso provocava no seio da elite soviética cristalizou a dicotomia entre grandes ambições geopolíticas, de um lado, e insuficientes capacidades para satisfazê-las, de outro, como aponta o historiador Stephen Kotkin, docente da Universidade de Princeton, pesquisador da Hoover Institution — think tank vinculado à Universidade de Stanford — e autor de monumental biografia de Stálin.

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Assim, a Rússia alternou momentos grandiosos com períodos de declínio nas relações internacionais. Na alvorada do século XVIII, o já referido Pedro, o Grande, derrotou os suecos na Batalha de Poltava (1709), conquistando-lhes o território onde ergueria a nova capital do império, São Petersburgo — depois Petrogrado, mais tarde Leningrado e, novamente, São Petersburgo –, estratégico porto que não congela no inverno, graças à Corrente do Golfo, e projetou o poderio russo na Europa do Báltico. O czar Alexandre I, auxiliado pelo “General Inverno”, venceu Napoleão Bonaparte, credenciando o Império Russo ao condomínio — também integrado pela Áustria, a Grã-Bretanha, a Prússia e a França pós-revolucionária — que redesenharia a Europa oitocentista e lhe traria uma Paz de Cem Anos até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. E, ao fim da Segunda, Stalin estabeleceu um império-satélite na Europa do Leste.

De outra parte, os russos foram derrotados pelos ingleses e franceses na Guerra da Crimeia (1853/1856), derrota que precipitou uma crise doméstica que, por sua vez, conduziu à emancipação dos servos (1861). Foram depois vencidos pelos japoneses em 1904/1905, até que, ao longo da Primeira Guerra, o colapso do czarismo abriu caminho à vitória da revolução liderada por Lênin e Trótski. Por último, mas não em último, na última década do século passado, o comunismo soviético virou pó, colocando um ponto final na Guerra Fria, ela, sim, sem o disparo de um único tiro. Vladimir Putin, o antigo espião da KGB, deplora o fim da URSS como a maior catástrofe geopolítica do século passado.

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Claro está que ele lamenta não o colapso de uma ideologia caduca, mas a perda de territórios maiores que a União Europeia ou a Índia. Por isso, desde que chegou ao poder há mais de 20 anos, ele se dedica ao objetivo estratégico de reconstituir a esfera de influência soviética, empurrando para Oeste as fronteiras da Otan, até os limites vigentes durante a Guerra Fria, e recriando uma vasta zona-tampão de modo a proteger o território russo — facilmente penetrável graças à imensa planura das estepes — da longa história das invasões vindas do Ocidente. Tudo isso sob a inspiração de um Eurasianismo recauchutado. Até agora, essa estratégia tem dado certo. Em 1999/2000, a Rússia bombardeou a Chechênia até a submissão. Em 2008, subtraiu à Geórgia, terra natal de Stálin e antiga república-satélite, os Estados-títeres da Abkazia e da Ossetia Meridional. Em 2014, reagindo ao movimento popular ucraniano que derrubara um presidente pró-Rússia, Putin anexou a Península da Crimeia. No ano seguinte, na Síria, o Kremlin solenemente desconsiderou a “linha na areia” traçada por uma vacilante administração Barack Obama, colocando sua aviação militar à disposição da tirania de Bashar al-Assad. Sem dúvida estimulado por esses sucessos, Putin agora se volta conta a Ucrânia, a pretexto de ‘proteger’ as populações de etnia russa do Leste do país (região do Donbas), produzindo nova fornada de repúblicas-fantoches: Donetsk e Luhansk.

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O regime russo não admite uma Ucrânia soberanamente decidida a se filiar à Organização do Tratado do Atlântico Norte e à União Europeia. A Rússia de Putin simplesmente rechaça a clara opção da maioria dos ucranianos pelos valores ocidentais da liberdade, dos direitos humanos e do governo limitado pelas leis, contra um modelo de civilização centralizadora, despótica e que exalta o poder do Estado sobre os interesses da sociedade civil.

Agora, contudo, o Kremlin se defronta com uma inédita resposta unificada do Ocidente, que está fornecendo armamentos e assistência técnica militar à resistência ucraniana e machucando a Rússia com pesadas sanções econômico-financeiras. E o crônico desequilíbrio entre ambições geopolíticas e capacidades estratégicas para realizá-las, indicado por Kotkin, reflete-se, por inteiro, na vulnerabilidade de uma grande potência militar, todavia às voltas com as limitações típicas de país exportador de commodities (sobretudo petróleo e gás). Essa ‘inconsistência de status’ repercute na psique histórica de Putin e do seu círculo de poder como um gigantesco ressentimento cujas irrupções periódicas tornam o ambiente internacional imprevisível e perigoso. O que fazer com a Rússia?…

Paulo Kramer é cientista político e especialista da Fundação da Liberdade Econômica

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