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O novo marco legal do câmbio e a teoria de path dependence

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Desenvolveu-se, há algumas décadas, no campo das ciências econômicas, uma teoria chamada de “path dependence”, segundo a qual decisões tomadas hoje levam em consideração eventos passados, muitas vezes de forma desarrazoada. Atribui-se o desenvolvimento inicial de tal teoria ao economista Paul A. David.

Tal teoria, hoje, é aplicada além dos limites da economia e pode ser utilizada para analisar questões sociológicas, jurídicas e políticas, por exemplo. Assim, explica um pouco do que se viu na edição da Lei nº 14.286, de 29 de dezembro de 2021 (“Lei nº 14.286/21”), que traz o novo marco legal das operações de câmbio.

As origens do atual regime legal-regulatório do mercado de câmbio brasileiro remontam à década de 1920. Assim, por exemplo, a Lei nº 4.182, de 13 de novembro de 1920, e o Decreto nº 23.258, de 19 de outubro de 1933, ambos ainda em vigor, trazem normas voltadas para as operações e o mercado de câmbio.

Em decorrência de constantes problemas macroeconômicos enfrentados no Brasil durante várias décadas, a visão que aqui prevaleceu é a de que os investimentos deveriam sempre ser direcionados para o território nacional e não para fora dele.

Por isso, em certas épocas foram criadas barreiras legais e regulatórias para dificultar e restringir, de maneira a quase impossibilitar, investimentos brasileiros no exterior. Tal pensamento sempre influenciou o conteúdo e a qualidade das normas cambiais editadas no Brasil.

Não obstante, em virtude do amadurecimento da economia brasileira originado do maior controle inflacionário observado desde o Plano Real, o regime legal-regulatório cambial brasileiro vem sendo modernizado de maneira a torná-lo mais flexível e alinhado com o que se vê em países desenvolvidos.

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Tal modernização vem sendo bastante paulatina e, recentemente, deu mais um importante passo com a edição da Lei nº 14.286/21. Mesmo assim, observa-se clara influência da “path dependence” no novo texto legal.

É importante ressaltar, de início, que a Lei nº 14.286/21 traz algumas importantes mudanças a serem festejadas.

Assim, por exemplo, o novo texto legal aumenta a flexibilidade de contratação de operações de câmbio, que poderão ser realizadas livremente e sem limitação de valor, observados a legislação e a regulamentação pertinentes. Já havia sido editada norma equivalente na regulamentação infralegal, mas, com a previsão em lei de tal possibilidade, aumenta-se a segurança jurídica. Constata-se, assim, importante avanço.

Outra alteração — talvez a mais importante — refere-se à possível redução da burocracia relacionada aos registros exigidos. De fato, há muitas décadas há exigência legal de se registrar, perante autoridades monetárias brasileiras, o investimento estrangeiro feito no Brasil.

O regime atual, em vigor desde a edição da Lei nº 4.131, de 3 de setembro de 1962, estipula que tal registro seja feito perante o Banco Central do Brasil nos casos de investimento estrangeiro direto ou em portfólio, ou, ainda, em casos de empréstimos internacionais voltados para residentes em território nacional, para que possam ser feitas legalmente remessas ao exterior de principal e juros.

A falta de registro, inclusive, legitimava a imposição de multas. A expectativa criada pelo texto da Lei nº 14.286/21, no entanto, é que seja abandonado o sistema de registro hoje existente e seja inaugurado outro, menos burocrático, em que bastará o fornecimento de informações ao Banco Central do Brasil.

Além disso, a Lei nº 14.286/21 põe fim aos poderes do Conselho Monetário Nacional para determinar restrições por certo período às importações e remessas de rendimento dos capitais estrangeiros sempre que ocorrer grave desequilíbrio de pagamento ou houver sérias razões para prever a iminência de tal situação.

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Um outro ponto bastante positivo encontrado na Lei nº 14.286/21 é o poder dado ao Banco Central do Brasil para autorizar e regular contas mantidas em moeda estrangeira em território nacional, que, até hoje, somente são permitidas em casos específicos e esporádicos.

Tal medida é algo demandada há muitos anos por agentes econômicos, inclusive como maneira de mitigar o risco das atividades das empresas que necessitam comprar e vender moeda estrangeira com certa regularidade.

Note-se, contudo, que, mesmo sem clara motivação, há aspectos da Lei nº 14.286/21 que ainda se apegam ao passado. É aí que reside o “path dependence” no novo regime cambial.

A preocupação do legislador brasileiro em manter controle rígido sobre o câmbio e as operações internacionais de pagamento sempre existiu, até mesmo para evitar a chamada “evasão de divisas”.

Como resultado direto disso, caso uma pessoa, física ou jurídica, tenha crédito a receber e dívida em relação a uma outra localizada no exterior, as obrigações devem ser cumpridas separadamente, mediante a realização de duas operações segregadas de câmbio, exceto se houver regra específica que autorize eventual compensação.

É a conhecida proibição à chamada “compensação privada de créditos”, que certamente aumenta os custos de cumprimento de obrigações internacionais.

Em um mundo moderno, que demanda rapidez nas remessas de recursos e redução dos custos, além do próprio amadurecimento da economia brasileira, tal tipo de restrição, ao que parece, deixou de fazer sentido. Tal ideia se reforça ainda mais com o fortalecimento cada vez maior do mercado de criptoativos, que permite a transferência internacional de recursos de maneira extremamente rápida, segura, eficiente e barata.

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Não obstante, ao invés de colocar fim por completo à proibição à compensação privada de créditos, o legislador fez outra escolha. De fato, a Lei nº 14.286/21 estipula que somente as operações de compensação privada de créditos ou de valores entre residentes e não residentes previamente autorizadas pelo Banco Central do Brasil poderão ser cursadas. Não está claro o motivo de permanecer qualquer restrição à compensação entre residentes e não-residentes, mas ela persiste, cabendo ao Banco Central do Brasil o poder para mitigar tal problema.

Chegou a hora de reformular verdadeiramente o regime cambial brasileiro e colocá-lo em patamar de real modernidade, mitigando o “path dependence” de maneira a reduzir os custos de transação, ao mesmo tempo que se dê segurança jurídica aos agentes de mercado. Isso se faz necessário com urgência para permitir a constante modernização do sistema financeiro nacional.

Marcelo Godke – especialista em Direito Empresarial, Mercado de Capitais (securitização, derivativos, IPOs), Integridade Corporativa, M&A, Societário, Project Finance, Contratos Domésticos e Internacionais. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito dos Contratos pelo Ceu Law School. Professor do Insper e da Faap, mestre em Direito pela Columbia University School of Law e sócio do Godke Advogados. Doutorando pela Universiteit Tilburg (Holanda) e Doutorando em Direito pela USP (Brasil).

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