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Jovens se endividam com agiotas ao cair no vício das apostas

A mesma dinâmica que gera dependência em álcool e drogas está presente nos jogos de azar, afetando de forma intensa crianças e adolescentes.

Apostas
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  • O desenvolvimento cerebral e a impulsividade tornam os jovens mais suscetíveis ao vício em apostas. Essa fase de crescimento os deixa mais expostos aos riscos de dependência, especialmente em plataformas de jogos de azar
  • A abundância de anúncios e a fácil acessibilidade às plataformas de apostas online atraem cada vez mais adolescentes, criando um ciclo perigoso que alimenta o vício e dificulta a percepção do problema
  • Especialistas destacam a importância de campanhas educativas e uma regulamentação mais rígida para limitar o acesso dos jovens a essas plataformas. A falta de supervisão, portanto, agrava o problema, e ações conjuntas entre governo e famílias são essenciais para proteger os adolescentes desse risco crescente

De acordo com uma pesquisa do Estadão com nomes fictícios para preservar as identidades, a realidade de crianças e adolescentes envolvidos em apostas online é preocupante.

“Miguel (nome fictício)” tinha apenas 16 anos quando fez sua primeira aposta em uma plataforma esportiva, popularmente conhecida como “bets”. O jovem acreditava que seus conhecimentos sobre futebol poderiam gerar um retorno financeiro rápido e fácil. No início, ele usava parte de sua mesada para fazer as apostas, mas conforme o vício crescia, começou a pedir dinheiro emprestado aos amigos. Quando esses recursos se esgotaram, ele recorreu a agiotas. Tal prática ilegal no Brasil, para financiar sua dependência.

Aos 18 anos, com a intervenção de seu irmão, Miguel finalmente iniciou tratamento médico, mas o processo foi dificultado pelo seu vício. Já que durante as primeiras consultas, ele não conseguia se desconectar do celular, acompanhando os resultados das apostas.

A história de “Fernando (nome fictício)”, de 17 anos, também expõe a gravidade da situação. Ele começou a apostar usando o cartão de crédito da mãe, sem que ela percebesse, até que os valores começaram a aumentar. Logo, Fernando buscou dinheiro com amigos. E, assim como Miguel, acabou se endividando com agiotas. Sua dívida acumulou rapidamente, chegando a impressionantes R$ 500 mil. A família só descobriu a extensão do problema quando começaram a receber ameaças e cobranças telefônicas. Os pais encaminharam Fernando para tratamento médico após ele apresentar sérios sintomas de ansiedade, distorção da realidade e pensamentos suicidas.

Entendendo a realidade de crianças e jovens

Esses casos refletem uma realidade crescente entre os jovens brasileiros: a dependência em jogos de apostas. Embora seja proibida para menores de 18 anos, essa prática tem atraído um público cada vez mais jovem. Segundo o Instituto Jogo Legal (IJL), atualmente existem entre 1.000 e 1.500 plataformas de apostas em operação no Brasil, abrangendo uma variedade de modalidades além do futebol, como basquete, tênis e vôlei. Há também os populares jogos de azar eletrônicos, como o “Jogo do Tigrinho” (ou Fortune Tiger), onde o jogador vence ao combinar três símbolos, com apostas variando de R$ 0,50 a R$ 600 por rodada.

A psiquiatra Nicole Rezende, especialista em dependências comportamentais pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), destaca que os mecanismos de vício em apostas online, conhecido como “transtorno do jogo”, são similares aos que levam à dependência de álcool e drogas. Estudos indicam que o potencial aditivo desses jogos é tão forte que alguns especialistas os comparam ao crack.

As questões fisiológicas, como o desenvolvimento cerebral e a propensão à impulsividade, exacerbam a vulnerabilidade dos adolescentes, tornando-os presas fáceis para o vício. Além disso, a facilidade de acesso a essas plataformas e a presença constante de anúncios em redes sociais acabam atraindo ainda mais jovens para esse ciclo perigoso.

Em resposta ao aumento dos casos de dependência, especialistas reforçam a necessidade de campanhas de conscientização e regulamentação mais rigorosa sobre o acesso a essas plataformas. A falta de controle e supervisão pode continuar agravando o problema, especialmente entre os mais vulneráveis, que, como visto, acabam recorrendo a soluções desesperadas, como o endividamento com agiotas. A prevenção, portanto, passa por medidas que envolvam tanto as famílias quanto o governo, na busca por proteger os jovens dessa armadilha digital.

O cenário piora quando se trata de crianças e adolescentes

Quando se trata de crianças e adolescentes, o cenário se agrava ainda mais. Nessa fase, o cérebro passa por um desenvolvimento crucial, especialmente em áreas ligadas ao controle de impulsos e à regulação emocional. Isso torna os jovens particularmente vulneráveis a qualquer tipo de dependência, já que essas funções ainda estão em maturação.

A médica Nicole Rezende, especialista em dependências comportamentais, destaca que essa vulnerabilidade é intensificada no caso das apostas. A imprevisibilidade, característica dos jogos de azar, cria uma excitação intensa ligada ao risco de ganhar ou perder dinheiro. O jogador pode apostar R$ 10 e ter a chance de ganhar R$ 100, ou arriscar R$ 500 e perder tudo. A incerteza se torna tão gratificante quanto a própria vitória, alimentando o ciclo do vício.

 “Como resultado, o cérebro quer repetir o comportamento, pois o considera altamente recompensador, o que acaba levando a apostas cada vez maiores e impensadas”, aponta Nicole.

“Para os mais jovens, como as áreas de controle ainda estão em formação, essa vulnerabilidade é ainda mais acentuada. Afinal, não existem os freios que podem racionalmente colocar uma interrupção, onde você diz ‘aqui já joguei demais, é hora de parar”.

A psicóloga Elizabeth Carneiro, diretora da clínica Espaço Clif, no Rio de Janeiro, observa que, desde a liberação das apostas esportivas e o sucesso de jogos como o “Jogo do Tigrinho” no Brasil, o número de adolescentes buscando tratamento para o vício em apostas aumentou significativamente.

Ela explica que os jovens são atraídos por dois principais fatores: a falsa promessa de lucro fácil e o uso das apostas como válvula de escape para problemas emocionais e cotidianos. Essas plataformas de jogos se apresentam como uma solução rápida e atraente, levando adolescentes a se envolverem cada vez mais, especialmente com a facilidade de acesso proporcionada pela internet.

“A adolescência pode ser uma fase complexa, e o jogo acaba se tornando uma anestesia, uma espécie de automedicação para vários tipos de problemas prévios, como depressão, conflitos familiares, ausência de afetividade, transtorno de déficit de atenção, flutuação do humor e até mesmo autoestima baixa, onde os possíveis ganhos também se traduzem em picos de melhora sobre a percepção que esses jovens têm de si mesmos”, afirma a especialista, que atua na área de dependências há cerca de trinta anos.

A mentira e a mudança de comportamento

Rodrigo Machado, psiquiatra e pesquisador do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) da USP, alerta para os sinais precoces do transtorno do jogo. Mudanças emocionais, distanciamento social e queda no desempenho escolar são indícios frequentes. Jovens que desenvolvem esse vício frequentemente perdem o interesse em atividades que não envolvam as apostas, preferindo passar longas horas conectados a plataformas de jogos.

Outra consequência comum, no entanto, é a inversão do ciclo de sono, trocando o dia pela noite para continuar apostando. Isso cria uma rotina desregulada, aumentando a irritabilidade e a agressividade.

“Assim como acontece com a dependência em álcool e outras drogas, nesse caso também existe a possibilidade de ocorrerem episódios de abstinência”, diz o especialista.

A mentira se torna uma constante no comportamento dos jovens viciados, seja sobre o tempo dedicado às apostas ou o uso do dinheiro. Muitos passam a usar o dinheiro destinado a necessidades básicas, como o lanche escolar, para sustentar suas apostas. O envolvimento com as plataformas digitais gera uma desconexão com a realidade, fazendo com que o mundo ao redor pareça desinteressante e monótono em comparação com a excitação das apostas.

Tolerância ao “mundo real”

A tolerância ao “mundo real” diminui, enquanto o apego à dinâmica de risco e recompensa dos jogos se fortalece.

“Depois que o cérebro é ‘capturado’ e o corpo entende aquilo como algo prazeroso, acaba surgindo uma dificuldade para lidar com os estímulos do dia a dia. Os jogos estão ali, na palma da mão, com apostas muito rápidas. Você finaliza a partida e logo inicia outra. Se isso gera prazer, e é acessível, o restante acaba se tornando desinteressante”, destaca Nicole.

Especialistas afirmam, no entanto, que é crucial que pais e responsáveis fiquem atentos a essas mudanças de comportamento. A falta de interesse por interações sociais, o aumento da agressividade e a queda no desempenho escolar são sinais de alerta. A busca por tratamento precoce pode ser essencial para ajudar os jovens a romperem com o ciclo de dependência e recuperarem sua qualidade de vida.

Pensamentos distorcidos da realidade

Outro fenômeno preocupante, no entanto, é o surgimento de pensamentos distorcidos e desconectados da realidade. De acordo com Elizabeth, muitos pacientes não conseguem admitir o vício, mesmo com dívidas acumuladas e sintomas de abstinência evidentes. Em alguns casos, o discurso, contudo, se torna eufórico e irreal, com falas como: “Eu sou diferente das outras pessoas, mais inteligente e melhor nas apostas.” Isso, portanto, reflete a dificuldade em reconhecer o problema, agravando a dependência.

“Muitas vezes, os pacientes acham que, se conseguirem algum dinheiro para jogar, eles vão reverter esse cenário de dívidas, porque acreditam que são bons naquilo. Eles falam ‘os problemas são as dívidas. Depois que eu pagar, não terei mais problemas’. É um pensamento fantasioso, que envolve frustração, medo, abstinência, vergonha, e, nesse misto, infelizmente há agravantes na saúde mental, como depressão, ansiedade e até mesmo tendências suicidas. Já tive paciente que chegou a dizer ‘não está valendo a pena viver’”, lamenta a psicóloga.

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