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China, Estados Unidos e Taiwan: entre a ambiguidade e a clareza

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QUANTAS GAFES presidenciais são necessárias para efetivar uma inflexão estratégica? Por três vezes desde que se tornou inquilino da Casa Branca, Joe Biden insinuou publicamente o abandono da “ambiguidade estratégica” nas relações da América com Taiwan em face da política anexacionista da República Popular da China. Em todas essas oportunidades, seus assessores correram para retificar, ou ao menos atenuar, as declarações do chefe. Mas, como lembra Marc A. Thiessen, colunista do Washington Post, o povo não elege assessores presidenciais…. Em 1979, sete anos depois da histórica visita de Richard Nixon à China, os Estados Unidos reconheceram diplomaticamente a RPC e, ao mesmo tempo, ‘desreconheceram’ a República da China (Taiwan).

Mesmo assim, sucessivas administrações em Washington, D.C., mantiveram laços políticos, econômicos e, sobretudo, militares com Taipé, com base do Taiwan Relations Act, aprovado pelo Congresso e sancionado por Jimmy Carter naquele mesmo 1979. De modo a não afrontar o novo parceiro comunista na missão de conter a hoje extinta, mas então ameaçadora, União Soviética, os Estados Unidos adotaram uma posição deliberadamente ambígua ante a hipótese de a RPC vir a recorrer à força para anexar Taiwan, que Pequim considera uma ilha rebelde e parte inalienável do território chinês, reservando-se a prerrogativa de retomà-la na eventualidade de os taiwanenses proclamarem unilateralmente a sua independência.

Em outras palavras, Washington não declara se vai ou não vai intervir militarmente para proteger Taiwan. Paralelamente, as maciças transferências de armamentos norte-americanos ao pequeno aliado ‘oficioso’ jamais cessaram. Na verdade, o governo Biden acaba de marcar um recorde histórico de vendas de material bélico a Taiwan (18 bilhões de dólares em quatro anos: caças F-16, tanques Abrams, mísseis antiaéreos Stinger, misseis antinavios, torpedos, drones da classe Reaper, entre outros itens). Em agosto do ano passado, a propósito dos desdobramentos de um ainda hipotético ataque russo à Ucrânia, Biden, em resposta a um repórter da rede ABC, salientou que

“[A]ssumimos um compromisso sagrado com o artigo quinto [da Carta da Organização do Tratado do Atlântico Norte] de que, se, de fato, alguém invadir ou atacar os nossos aliados da Otan, nós responderemos. O mesmo [vale] para o Japão, para a Coreia do Sul, para Taiwan”.

Dois meses depois, agora diante das câmeras da CNN, indagado se os Estados Unidos entrariam em guerra para defender Taiwan de um ataque militar chinês, o presidente foi igualmente claro: “Sim, temos o compromisso de fazê-lo”. E, em maio último, durante entrevista coletiva por ocasião de sua visita a Tóquio, Biden foi perguntado: “O sr. não quer se envolver militarmente no conflito ucraniano por razões óbvias [mas] [e]staria disposto a se envolver militarmente em defesa de Taiwan [. . .]?” Resposta presidencial curta e grossa: “Sim”. O repórter insistiu: “O sr, está [disposto]?” Resposta mais detalhada: “É o compromisso que assumimos [. . .] A ideia de que [Taiwan] pode ser tomada a força simplesmente não é apropriada”. Toda estratégia bem-sucedida depende do equilíbrio entre aspirações e capacidades — os objetivos e os meios disponíveis para alcançá-los.

Ora, vários jogos de guerra e simulações conduzidos pelo Pentágono demonstram que a opção dos Estados Unidos pela “clareza estratégica” em relação à defesa de Taiwan está fadada ao fracasso. Como esclarece Oriana Skylar Mastro, expert em assuntos militares chineses, nos últimos 20 anos, a China aproveitou sua bem-sucedida decolagem econômica para modernizar seus arsenais. Hoje, os mísseis da marinha do Exército de Libertação Popular (ELP) são capazes de neutralizar os porta-aviões da armada americana. A força aérea de Tio Sam conta a penas com duas bases, no Japão, para se deslocar até o Estreito de Taiwan sem necessidade de reabastecimento, já a China possui 39 bases aéreas a apenas 500 milhas de Taipé. Um ataque preventivo dos chineses, no caso de a liderança comunista estar convicta de que os americanos reagirão em defesa de Taiwan, frustará essa reação aeronaval.

No front cibernético, a doutora Mastro adverte que o ELP está em condições de abater satélites militares americanos, comprometendo seus sistemas de comunicações, inteligência, comando e controle. Em contraste, os chineses, operando do seu próprio território, dispõem de cabos de fibra ótica, o que lhes assegura um fluxo estável e confiável de dados e informações. É possível que, de modo a evitar uma represália em larga escala, o ELP venha a concentrar seus ataques em Taiwan, evitando engajamento direto com as forças armadas dos Estados Unidos. Por outro lado, é igualmente possível — sustenta Oriana Mastro — que, temendo envolver-se numa escalada do conflito, os aliados da América na região relutem em facilitar-lhe o acesso a portos, aeródromos etc.

Para afastar esse perigo, não basta que os Estados Unidos dobrem a aposta na diplomacia da “ambiguidade estratégica”, que, honra seja feita, até hoje foi capaz de manter a paz no Estreito de Taiwan, Mas, na etapa histórica que se inicia, de bipolaridade emergente opondo potências liberal-democráticas e patrimonialismos agressivamente iliberais, como China, Rússia e Irã), isso é insuficiente. Volta e meia citado nesta coluna, o analista Hal Brands, professor da Escola de Estudos Internacionais Avançados (Sais), vinculada à Universidade Johns Hopkins, e colunista da Bloomberg, afirma que a causaraiz da crescente instabilidade nas relações entre Pequim e Washington, não reside no compromisso do segundo com a democracia taiwanesa, mas, sim, no desequilíbrio militar cada vez mais favorável à RPC.

O livro que Brands acaba de publicar em co-autoria com o cientista político Michael Beckley, docente da Universidade Tufts e pesquisador do think tank conservador American Enterprise Institute — The Danger Zone: the Coming Conflict with China — aconselha, entre outras as seguintes medidas: o reforço e a simultânea dispersão das bases militares dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico, de modo a reduzir a atual vulnerabilidade a um ataque chinês; a expansão dos arsenais do Pentágono, principalmente mísseis de longo alcance e outras munições teleguiadas de precisão capazes de romper qualquer bloqueio aeronaval a Taiwan e, ao mesmo tempo, absorver o impacto dos primeiros dias de conflito sem perda de capacidade de resposta; e a intensificação das relações militares com Taiwan, com a realização de exercícios militares multilaterais.

O supracitado Marc Thiessen faz coro a Brands e Beckley quando reconhece que a melhor maneira de manter a paz na região consiste em dissuadir o regime chinês de anexar Taiwan à força — e não esperar passivamente por um ataque como aquele que o exército de Vladimir Putin desferiu contra a Ucrânia há mais de cem dias.

Por Paulo Kramer, cientista político e especialista da Fundação da Liberdade Econômica