Continua após o anúncio
O dragão da inflação é um velho conhecido dos brasileiros. Foi domado com a chegada do Plano Real mas, vez por outra, volta a ocupar as primeiras páginas dos jornais.
A preocupação se justifica. Níveis elevados de inflação provocam alocação ineficiente de recursos, aumentam a incerteza, desorganizam a economia e afetam o bem-estar, principalmente dos segmentos mais carentes da sociedade.
Isso se torna ainda mais grave em um país com grande desigualdade social como o Brasil, já que as famílias de baixa renda possuem menos reservas de poupança e menor flexibilidade orçamentária para enfrentar os períodos de carestia.
Os principais índices de inflação ajudam a entender como está evoluindo a inflação geral no país embora representem cestas de consumo muito abrangentes das famílias. Não permitem, portanto, entender como a inflação afeta orçamentos de distintos padrões de renda familiar.
Neste artigo procuramos analisar como evoluiu a inflação em diferentes níveis de renda familiar desde o início de 2020, período em que o dragão voltou a assombrar o país e a inflação vem persistentemente se situando acima da meta estabelecida pela autoridade monetária, comprometendo orçamentos familiares e iniciando um ciclo de alta dos juros que já dura 12 meses e elevou a Selic de 2% a.a. para 11,75% a.a. entre março de 2021 e março de 2022.
Com a abertura por decis de renda familiar podemos identificar que parcela da sociedade está sendo mais afetada pelo processo inflacionário, ilustrando o fato de que nem sempre a inflação atinge todas as famílias com a mesma intensidade.
A tabela 1 a seguir mostra como famílias com distintos níveis de renda perceberam a inflação nos últimos dois anos. Os decis de renda foram determinados de acordo com a renda das famílias, segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), criando dez diferentes estruturas de ponderação para o IPC-Brasil, o Índice de Preços ao Consumidor do FGV IBRE.
A inflação foi decrescente com a renda em 2020 também pelo fato de que, dentro dos grupos Alimentação e Habitação, a pressão de preços foi maior para as famílias de baixa renda.
Enquanto as famílias do primeiro decil de renda enfrentaram alta de 16,7% nos preços dos alimentos, as do último decil registraram alta de 10,3%. Analogamente, a inflação dos itens de habitação foi de 6,60% para os mais pobres e de 4,68% para os mais ricos.
Os dois grupos responderam por 85% da inflação de 7,0% das famílias de baixa renda e 63% da inflação de 4,3% das famílias mais abastadas naquele ano.
Analisando mais detidamente a inflação das famílias com renda até 1,5 salário mínimo (SM), nota-se que todos os 10 itens com maior influência na inflação de 2020 pertencem aos grupos Alimentação e Habitação, com destaque para tarifa de eletricidade, arroz, gás de bujão e óleo de soja, todos com altas acima da média da inflação no ano.
No caso das famílias com renda superior a 11,5 SM, somente cinco dos dez itens de maior influência vieram dos grupos Alimentação e Habitação. Entre os destaques para esta faixa de renda há diversos itens com peso muito baixo entre as famílias de menor renda, como os automóveis novos e passagens aéreas.
Os números mostram que a inflação de 2020 foi pouco democrática, terminando por exacerbar as dificuldades das famílias de baixa renda e neutralizando parte do impacto positivo das medidas emergenciais de combate aos efeitos nocivos da pandemia de covid-19 sobre a economia.
Ainda em 2020, a inflação das famílias mais ricas foi mitigada por fatores como o adiamento do reajuste dos planos de saúde e por descontos concedidos por escolas particulares em função da prática do Ensino à Distância (EAD).
2021: a inflação se democratiza (no mau sentido)
Em 2021, a inflação acelerou para todos os grupos de renda e foi, de forma não virtuosa, mais “democrática”, com o maior espalhamento dos reajustes de preços. Embora não muito distantes das demais, as taxas mais elevadas ocorreram em classes intermediárias de renda, em outras palavras, na classe média, como mostra a tabela 1.
Entre os mais pobres, os grupos Alimentação e Habitação continuaram sendo os vilões, mas os Transportes surgiram como um novo fator de pressão para a inflação de 8,88% deste grupo no ano. Entre os mais ricos, a alta de 18,5% nos preços de Transportes respondeu por nada menos que 43% da inflação de 8,72% no ano.
Entre os itens que mais influenciaram neste resultado estão as altas de preços de 49,12% da gasolina, 10,66% do automóvel novo e de 42,67% nas passagens aéreas.
Os energéticos foram os novos grandes vilões da inflação em 2021, ano em que gasolina, energia, diesel, GLP e etanol representaram quase 50% do IPC-Brasil.
As despesas que mais impactaram os orçamentos das famílias em 2021. Para as famílias de baixa renda, as três primeiras posições foram ocupadas por itens de energia, que responderam por 48% da inflação. A pressão da inflação deste grupo também foi grande para as famílias mais ricas.
E como o grupo transportes onera 20% do orçamento dos mais ricos, o reajuste dos combustíveis impactou significativamente o custo de vida destas famílias, superando as participações dos grupos Habitação (21,4%) e Alimentação (15%).
Perda de Bem-Estar das famílias captada no Índice de Confiança do Consumidor
Considerando-se a inflação acumulada nos dois anos desde o início da pandemia, entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2022, as classes de renda mais baixas continuam sofrendo mais.
Para um IPC-FGV acumulado de 15,2%, a inflação das famílias de renda mais baixa foi de 16,8% e a das de renda mais alta de 13,6%. A classe média ficou no meio do caminho. A perda de bem-estar com esta pressão de preços é de certa forma captada pela evolução recente dos índices de confiança do consumidor de alta e baixa renda.
Partindo de um nível de 100 pontos em fevereiro de 2020, a diferença entre a confiança dos consumidores de renda mais baixa e mais alta foi crescente desde o início da pandemia até meados do ano passado. Mais recentemente, os dois índices se aproximaram um pouco, mas a confiança da baixa renda continua inferior à das famílias de renda mais alta, como mostra o gráfico a seguir.
O que esperar para 2022?
Em 2022, novamente o país observará níveis elevados de inflação. Nossa projeção de 7% para o IPCA é dois pontos percentuais superior ao teto de tolerância da meta de inflação para o ano.
A situação tornou-se mais incerta e complicada recentemente com a deflagração do conflito entre Ucrânia e Rússia. Este conflito geopolítico tende a provocar pressões inflacionárias em importantes commodities agrícolas e minerais.
A escalada do preço do petróleo e dos grãos, sobretudo trigo, fará com que a inflação destes itens afete famílias de todos os níveis de renda.
No sentido contrário, a associação entre a fuga de capitais de países envolvidos no conflito e níveis de juros reais elevados no Brasil levou à valorização do câmbio R$/US$, o que deve atenuar a pressão de commodities, assim como a mudança de bandeira tarifária de eletricidade a partir dos próximos meses.
Ilustrando como a guerra pode afetar todas as classes de renda, os embargos promovidos contra a Rússia tendem a desmobilizar cadeias de distribuição de matérias-primas, favorecendo o aumento de preços de commodities.
A escalada dos preços do petróleo afetará outros produtos de maneira direta e indireta. A cadeia de derivados, composta por resinas, plásticos, fertilizantes e combustíveis, espalharão as pressões inflacionárias por diversos segmentos.
E, indiretamente, os preços do petróleo também afetarão outros setores, como o têxtil, encarecendo o algodão, dado o provável aumento do preço do poliéster, bem como o setor sucroalcooleiro, dada a substituição de gasolina por etanol e a provável decisão do setor em produzir mais etanol do que açúcar.
Na esteira de aumentos de preços esperados para 2022 estão, em ordem: combustíveis fósseis, alimentos, bens duráveis e serviços. Esta extensa relação de itens para os quais se espera alta não poupa classes sociais e, mais uma vez, a inflação será percebida por todos.
No contexto macroeconômico, a inflação mais alta levará a ajustes no ritmo de crescimento econômico, adiando o sonho da retomada de uma rota de crescimento sustentado de nossa economia para 2023.
Aloisio Campelo Jr.; André Braz; Taíse Lyra; Júlio César de Azevedo – FGV
Follow @oguiainvestidor
DICA: Siga o nosso canal do Telegram para receber rapidamente notícias que impactam o mercado.